Gullar: decadência política de um grande poeta. Por Paulo Moreira Leite |
Cultura | |||
Tuesday, 06 December 2016 08:12 | |||
Gullar foi um poeta com uma obra especial, com vários momentos de gênio. Impossível por exemplo ler Poema Sujo e deixar de se comover do primeiro ao último verso pelo ritmo, pela linguagem, pela coragem intelectual. É obra de leitura obrigatória, insubstituível. Recomendo ler e reler. Só ela justifica as homenagens que já recebeu e deve receber nos próximos dias. Mas Gullar passou a última década como um ativista político radical, titular de uma coluna dominical na Folha que era dedicada, linha por linha, parágrafo por parágrafo, a uma tentativa de destruição sistemática do projeto Lula e tudo o que ele representou. Jamais exibiu, nesse terreno, a grandeza que mostrava na poesia. Pelo contrário. Com uma experiência política que não autoriza reações ingênuas, Gullar aplaudiu a perseguição ao ex-presidente e não se permitiu um resmungo de protesto diante da "encenação", como diz Joaquim Barbosa, que derrubou Dilma Rousseff e produziu a mais grave ruptura institucional do país desde 1964. Não denunciou a "encenação." Fez parte dela, como quadro privilegiado de uma tropa de choque articulada e bem ensaiada. Numa avaliação franca, sem hipocrisia, é difícil deixar de reconhecer que, todos os méritos criativos à parte, o alinhamento político tenha contribuído -- e muito! -- para a consagração obtida nos anos finais junto aos grandes meios de comunicação, a começar pela Globo em todas suas versões. Num discurso frequente em cidadãos com seu histórico político, Gullar foi um quadro importante no Partido Comunista Brasileiro e costumava justificar o novo comportamento a partir de um argumento hoje clássico: a noção de que nos dias de hoje não existem mais diferenças importantes entre esquerda e direita no espectro político. Jamais decifrou, contudo, um obscuro enigma: se não havia diferenças entre uns e outros, por que seus ataques sempre se dirigiam apenas a políticos que uma visão tradicional colocaria à "esquerda" e nunca se voltavam contra a "direita." Em fevereiro de 2011, entrevistei Ferreira Gullar no programa Roda Viva, que tinha Marília Gabriela como âncora. Num dos bons momentos de um programa que ameaçava transformar-se num palanque tardio de ataques e críticas a Lula e Dilma, que acabara de ser eleita para o primeiro mandato, coloquei uma questão que sempre me incomodou. Perguntei se ele admitia que havia um certo ressentimento de veteranos do comunismo -- como ele -- neste comportamento excessivamente crítico, para usar termos amenos. Lembrei que, afinal de contas, ele também pertencera ao mesmo espectro político de esquerda quando se tornara uma personalidade pública. Repetindo a visão que nivela esquerda e direita no mesmo nível de qualidades e defeitos, Gullar anunciou a derrocada dos partidos que haviam liderado a luta contra a ditadura, como PT e PSDB, e o surgimento de uma geração de políticos que lhe pareciam aprumados para liderar o país do futuro. Falou em três nomes. Anotem: Aécio Neves; Sérgio Cabral; Eduardo Paes. De certa maneira, a postura de Gullar lembra a anedota daquele cidadão de Hiroshima, que se encontrava no banheiro na hora em que o Enola Gay despejou a bomba atômica na cidade -- e imaginou que tudo aconteceu depois que resolveu apertar o botão de descarga. Gullar entrou para o PCB oito anos depois que tropas soviéticas invadiram a Hungria, que procurava defender sua autonomia frente a Moscou e Nikita Kruschev já havia denunciado os erros e crimes de Stalin num relatório histórico. Os expurgos da década de 30, marco de execuções sumárias de dissidentes que se prolongaram pelas décadas seguintes, eram um fato conhecido. A data de sua filiação -- 1964, após o golpe -- honra a biografia de qualquer pessoa. Mas quatro anos depois as tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia para destruir a Primavera de Praga e nem assim ele concluiu que a diferença entre esquerda e direita havia terminado. A leitura de um clássico de Norberto Bobbio, um social democrata culto e moderadíssimo, mostra que as distintas visões de mundo entre esquerda e direita envolvem prioridades, valores e interesses que estão muito além de episódios históricos, por mais relevantes que possam ter sido, na Revolução Francesa, na Revolução Russa, antes, durante ou depois da Guerra Fria. Isso porque a luta contra a injustiça e o anseio de igualdade e liberdade sempre farão parte da existência humana -- e é definindo-se em torno dessas questões que uma pessoa é obrigada a, assumindo um lado, colocar-se à direita ou à esquerda. Mais do que um trabalho da razão, o esforço para apagar diferenças e contradições de vulto sempre funcionou como um atalho para acomodações delicadas, com base na moda ideológica nascida na Queda do Muro de Berlim, como o fim da História e o pensamento único. A teoria de que a diferença entre esquerda e direita perdera o sentido é filha dessa época. Foi o argumento que ajudou a justificar uma derrota imensa e prolongada do projeto nascido em outubro de 1917. A visão de que a esquerda perdera sentido ganhou urgência quando ser de esquerda, para muitos dirigentes, tornara-se sinônimo do próprio fracasso. Gullar globalizou-se em todos os sentidos. Inclusive no Jardim Botânico. Apenas um condenável pensamento totalitário admite que uma pessoa pode ser condenada em função de suas opiniões políticas. A crítica, quando isenta de preconceitos, é um instrumento indispensável para o avanço da cultura de um país. Os tumultos e viradas da História humana produzem realinhamentos políticos tão frequentes como inesperados, alimentando travessias que é mais produtivo tentar compreender do que julgar, até porque muitas possuem um caráter provisório, sujeito a novas alterações e reviravoltas. A experiência de povos e países está recheada de exemplos a respeito. Para ficar num caso distante do Brasil, que não tem a menor relação com Ferreira Gullar nem com sua trajetória. Mas ajuda a entender a dimensão que essa discussão assumiu no século XX em diante. Militante corajoso das brigadas revolucionárias que defenderam Barcelona contra o ataque das tropas fascistas durante a guerra civil espanhola, o inglês George Orwell produziu páginas inesquecíveis sobre um episódio que marcou a experiência política de sua geração. Também produziu um romance, 1984, que contém elementos inspiradores para a discussão sobre as ditaduras stalinistas. No fim da vida, contudo, Orwell tornou-se uma versão inglesa do macarthysmo, abandonando a debate político para entregar listas de nome de militantes apontados como suspeitas de simpatias comunistas ao estado britânico, consciente de que os dados chegariam ao serviço de informação. É o que se aprende nas páginas 320 e seguintes do livro "Quem Pagou a Conta -- A CIA na Guerra Fria da Cultura, " onde a pesquisadora Frances Stonor Saunders faz um revelador levantamento sobre o recrutamento e patrocínio de intelectuais no pós-Guerra, mostrando os delicados movimentos que se assiste na luta por ideias. Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/268929/Gullar-decad%C3%AAncia-pol%C3%ADtica-de-um-grande-poeta.htm
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