O afeto racista como virtude no Brasil de Bolsonaro. Por Jessé Souza |
Comportamento | |||
Thursday, 14 May 2020 02:36 | |||
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No entanto, o que mais chama atenção é o fato de que, embora sua popularidade tenha declinado nas hostes da classe média mais esclarecida, como mostram pesquisas e os "panelaços" nos bairros mais ricos, sua popularidade continua inabalável. Bolsonaro mantêm sólido apoio de cerca de 25% a 30% do eleitorado, acima de tudo nas classes populares evangélicas, o que o permite manter a profunda divisão política do país e a continuidade da agenda neoliberal turbinada de destruição do Estado e da constituição "socialdemocrata" de 1988. Em um período de crise aguda como esta, onde é necessário acalmar a população e se sensibilizar com a dor do próximo, Bolsonaro mostra sua incapacidade patológica de qualquer empatia humana. Ele só reage à mentira, à intriga, à briga constante. Ele aprendeu com Steve Bannon e com seu aprendiz de feiticeiro brasileiro, Olavo de Carvalho, o "guru intelectual" de Bolsonaro e de seus filhos, que o ódio e o ressentimento são as emoções humanas mais fortes. Se você tem acesso a uma máquina de fake news como o WhatsApp e dinheiro para mantê-la, você pode, pela simples manipulação do ódio, manter seu eleitorado cativo sem oferecer, materialmente, nada em troca. Pior ainda, neste momento, ele incita seus seguidores mais leais a agirem do mesmo modo irresponsável que ele. Como explicar tamanha insanidade coletiva? Por trás de todo comportamento social abertamente irracional baseado no ódio está alguma forma de racismo. E a sociedade brasileira é a campeã do mundo quando se trata de revestir seu racismo em vestes douradas e reluzentes. Como o racismo aberto no Brasil foi tornado impossível pelo sucesso da ideologia da mestiçagem a partir dos anos 1930, do elogio ao "povo mestiço" de Gilberto Freyre e de Getúlio Vargas, o racismo no Brasil vai passar a ser exercido por interposta pessoa. Que a classe média nunca se importou verdadeiramente com a corrupção ?basta lembrar que nenhuma alma branca, privilegiada e bem vestida saiu às ruas gritando histericamente contra a corrupção, como havia feito contra o PT, quando a TV mostrou a todos as malas de dinheiro e as alusões a assassinato de Aécio e Temer, respectivamente, o candidato e o presidente da oposição conservadora. Como é o comportamento que diz quem as pessoas são, e não o que elas dizem da boca para fora, o que anima o espírito da classe média? O que está por trás da máscara de grandeza moral que não pode dizer seu nome? Ora, como no Brasil o racismo não pode dizer seu nome (nem Bolsonaro se admite racista), a saída perfeita é transformar o afeto racista em virtude, possibilitando sua moralização sob a forma do "combate à corrupção". Como são sempre pobres e negros que votam em partidos populares, a pecha de corrupto ou de apoiar político corrupto permite criminalizar a soberania popular enquanto tal e legitimar golpes de Estado. Permite também metamorfosear o ódio racista transformando, de lambuja, o racista das classes altas e brancas em campeão da moralidade. Desde 1930 esta é a regra de ouro da política brasileira. Bolsonaro construiu sua campanha se alimentando do racismo reprimido brasileiro em duas frentes: o racismo travestido de falso moralismo das classes superiores contra os pobres e qualquer tentativa de ascensão social dos mesmos, precisamente o que Lula representava, e contra o "delinquente" das classes populares. O racismo também é a energia e o afeto principal aqui. Do mesmo modo que o racismo da classe média contra o povo se traveste de moralismo anticorrupção, o racismo do "pobre remediado", evangélico e conservador, que foi a principal base de apoio a Bolsonaro, traveste seu racismo em luta contra o crime, sendo a delinquência percebida como atributo do negro pobre. Todo brasileiro sabe, afinal, por experiência que quem morre nas mãos da polícia é o jovem negro das favelas. São milhares a cada ano. Uma verdadeira guerra civil onde só se morre de um lado. No contexto das classes populares, o racismo mascarado brasileiro é tornado possível pela metamorfose que opõe o "pobre honesto" ao "pobre delinquente". O delinquente é o "bandido", que pode ser o simples usuário ou pequeno vendedor de maconha, por exemplo, no caso do homem, e da "prostituta" se for mulher. São empregos de quem não tem chance de ter acesso a outra coisa e todos são pobres e a maioria é negra. O homossexual de ambos os sexos é a outra figura paradigmática do "delinquente". O bolsonarista das classes populares ganha entre dois e cinco salários mínimos e é muitas vezes o imigrante europeu branco pobre que não ascendeu, como a própria família de Bolsonaro, filho de imigrantes italianos pobres do Estado de São Paulo. São Paulo e o Sul do Brasil concentram a imigração europeia de italianos, alemães e eslavos. Bolsonaro teve mais de 70% dos votos desta região, ao passo que apenas 30% dos votos do Nordeste mestiço e negro. Sem ter acesso aos privilégios educacionais da classe média branca e privilegiada que comanda o mercado e o Estado em nome da elite econômica, muitos entre eles seguem o caminho de Bolsonaro e entram nas fileiras das patentes médias e baixas do exército e das polícias militares. Bolsonaro é o líder do "lixo branco" brasileiro, que obviamente abrangem os negros que se identificam com o opressor e negam o racismo, como o presidente da fundação Palmares. Um segmento ressentido com a classe média branca e estabelecida, e que apoia, portanto, a cruzada de Bolsonaro contra a ciência, a pesquisa, a arte, a universidade pública e o conhecimento. Como o "conhecimento" e o capital cultural, o fundamento do privilégio da alta classe média, é percebido, na dimensão intuitiva e afetiva, pelo "lixo branco", como as causas de sua inferioridade social, seu apoio à cruzada obscurantista é total. Contra os pobres e negros abaixo dele socialmente é possível compensar e canalizar sadicamente o sentimento de inferioridade sob a forma do genocídio dos jovens negros e repressão de qualquer expressão religiosa, cultural e política dos negros e dos pobres. Neste sentido, a possibilidade de uma catástrofe sanitária nas favelas e bairros mais pobres, onde as famílias se amontam em espaços ínfimos e sem condições de higiene, se mostra como uma possibilidade efetiva. Bolsonaro, inclusive, atrasa e cria dificuldades burocráticas para a ajuda emergencial decidida recentemente pelo Congresso aos mais pobres de pouco mais de 600 reais ao mês pelos próximos três meses. Seja pelo alastramento da covid-19, seja pela fome e desespero de uma população deixada a míngua e sem assistência, a aposta no caos é um cálculo político do Bolsonarismo. Bolsonaro busca ansiosamente um pretexto para produzir um caos social que possa legitimar uma reação armada das milícias e do Exército e um fechamento do regime político. Um golpe evangélico-miliciano-militar, parecido com o que aconteceu na Bolívia em 2019, seria a salvação de Bolsonaro e sua família acuada por múltiplas acusações de corrupção e, inclusive, de ligação suspeita com assassinato, como o caso da vereadora Marielle Franco, que ronda cada vez mais de perto sua família. A crise sanitária da covid-19 no Brasil pode tanto acelerar um golpe de Estado mafioso-religioso, quanto a queda de Bolsonaro e de sua popularidade, mantida por fake news e pela manipulação do ancestral e reprimido racismo brasileiro. Jessé Souza é doutor em Sociologia, com pós doc em psicanálise e filosofia. É autor de mais de 20 livros.
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