Meu presidente do sonho e da realidade. Por Luciana Hidalgo |
Cidadania | |||
Wednesday, 12 September 2018 06:32 | |||
Talvez a “polarização” no país se dê menos em termos de uma ideia clara do que é esquerda e direita (ou extrema-direita), e mais numa disputa entre um modelo europeu de governo x modelo americano de governo. É o que está em jogo. Meus anos na França me ensinaram a defender direitos básicos levados a sério por muitos países europeus e que garantem a tal “qualidade de vida” que tanto admiramos quando os visitamos: saúde e educação gratuitas para todos (universidades inclusive), seguro-desemprego alto e durável para que o desempregado não caia na miséria, salário-mínimo de uns R$ 4.500. Somente esses três itens já reduziriam o abismo da desigualdade social entre pessoas com e sem diploma no Brasil, diminuindo drasticamente a violência nas nossas ruas. Dos EUA sei o que não defendo: universidades caríssimas que impedem o ingresso de alunos pobres (a não ser que se endividem por toda a vida para pagá-las), pessoas doentes literalmente jogadas na rua por hospitais porque não têm dinheiro para plano de saúde (e lá não existe um SUS para atender os mais pobres), armas vendidas livremente que acabam nas mãos de adolescentes se matando uns aos outros em escolas. É uma cultura (a americana) cada vez mais empobrecida por valores extremamente consumistas, o que, aliás, se reflete na “cultura” propriamente dita, exportada para cá: filmes de ação e violência extrema, ou de zumbis, vampiros, aliens, tubarões, tubarões zumbis (parece piada, mas é verdade!), que atualmente perfazem uns 90% da grade de cinema da TV por assinatura no Brasil. Que lástima. Há americanos que nada têm a ver com essa cultura, amigos meus inclusive, mas se aqui generalizo, é porque eles também se ressentem desse “American way of life” que divide humanos em “winners” (vencedores) e “losers” (fracassados). Como se a vida fosse simples assim. A eleição de Trump é apenas o clímax dessa cultura fútil e tão desigual, daí a sociedade cada vez mais armada. Infelizmente uma parte do Brasil é cegamente influenciada por esses “valores”, pela ilusão de que todos serão empreendedores, ricos e poderosos – e fodam-se os que não chegam lá. No entanto, pouquíssimos chegam lá. O “American dream” é furado por partir de uma falsa premissa. Afinal, para todos terem a mesma chance de sucesso, todos deveriam sair do mesmo ponto de partida, como numa corrida olímpica. E isso não acontece. Entre os poucos que se tornam milionários, a maioria já nasceu em família rica e passará a vida explorando (como seus pais antes exploraram) aqueles que trabalham dia e noite convencidos de que chegarão lá. Não chegarão, é cruel. O que me encanta em países como a França é que, para começar, não se vende a ilusão de um megalomaníaco “French dream”. O principal valor não é o dinheiro a qualquer custo nem o empreendedorismo fake, e sim uma cultura secular centrada em educação, arte, literatura, patrimônio histórico (museus etc.) – e no respeito aos direitos humanos. Lá o governo regula os excessos do capitalismo quando necessário. Alguns governos de direita tentam às vezes reduzir direitos, mas sempre mantêm os básicos, esses que no Brasil são por muitos considerados “regalias” de “vagabundos”. Lá se regulam as aberrações do capitalismo para que o empresariado e esse ser abstrato chamado “mercado” não provoquem genocídios diários (mesmo assim matam muita gente de fome por aí). Dou um exemplo concreto no Brasil: diante dos recentes reajustes absurdos nos planos de saúde, um governo decente já teria negociado aumentos menores com as operadoras. Mas não. O modelo americano (e o brasileiro atual) simplesmente libera os preços – e fodam-se os que não podem pagar. Na teoria acham que a concorrência se encarregará de regular os preços, o que na prática não acontece. O recente congelamento por 20 anos dos gastos em saúde e educação pelo governo brasileiro, num país em que esses direitos básicos já são capengas, mostrou que a “filosofia” à la USA aplicada no Brasil é a do “liberou geral”. E viva o auxílio-moradia dos juízes, viva o aumento dos salários milionários dos juízes do STF, viva o perdão do governo a dívidas bilionárias do banco Itaú (R$ 25 bilhões perdoados só em 2017). E fodam-se os hospitais, fodam-se as escolas e universidades, foda-se o Museu Nacional. É bonito – e até irônico – perceber que o projeto de Brasil do Lula tinha muito mais a ver com o moderno modelo europeu de governo (e aqui me refiro mais ao francês por conhecê-lo a fundo). Por isso, muitos dirigentes europeus defendem Lula – e também a ONU, criada justamente para regular as aberrações de seus países-membros. Europeus entendem que a luta de Lula para tirar milhões de pessoas da miséria é o primeiro passo para um país digno e desenvolvido. Sem esse primeiro passo, essa pedra fundamental, países europeus passam a evitar o Brasil, assim como no fundo evitam países miseráveis e pouco democráticos na África. Sim, nossa credibilidade no exterior, que na época do Lula chegou ao auge, hoje está abaixo do nível do mar. É bonito – e até irônico – perceber que Lula fez o que fez pelo Brasil (políticas públicas tipicamente europeias adaptadas às condições brasileiras) sem ter sequer um diploma, apenas com inteligência intuitiva, senso de justiça e de responsabilidade coletiva, além de muita competência política. E agora entendo por que Lula escolheu Haddad para sucedê-lo. Não que eu ache que o Brasil deva seguir o modelo europeu ou qualquer outro, sei que ainda encontraremos o modelo 100% brasileiro, mas quando escuto o que Haddad diz, noto os valores genuinamente republicanos de liberdade-igualdade-fraternidade que nortearam a França e a tornaram uma nação melhor (nada perfeita, claro, já que tudo nesse mundo é imperfeito, ou seja, tudo “work in progress”). Além disso, Haddad tem uma formação intelectual invejável: professor de Ciência Política na USP, tem graduação em Direito, mestrado em Economia e doutorado em Filosofia. Ou seja, é advogado, entende tudo de lei e de política, leu os grandes filósofos e ainda por cima foi um gestor exemplar na prefeitura de São Paulo, deixando ao sair mais dinheiro em caixa do que havia quando entrou. É um prazer ouvir Haddad falar: seu português perfeito, seu discurso inteligente, culto sem ser pedante, sua defesa dos direitos humanos. Lula não é bobo não. Passará seus 40% de votos ao companheiro porque o modelo Lula será, não apenas mantido por Haddad, mas aprimorado. E a julgar pelas pesquisas de intenções de votos, o povo, essa massa que nos últimos dois anos andou totalmente invisível devido ao esfarrapado “Brazilian dream” vendido pelos poderes sem-vergonha desse país, certamente votará no modelo Lula-Haddad. Que, aliás, ainda traz na chapa uma mulher admirável como vice: Manuela D’Ávila. Somente um novo-velho golpe impediria a eleição de Haddad, mas o custo disso aos olhos internacionais seria alto demais e praticamente inviabilizaria a economia brasileira em sua dependente relação com o mundo. Que venham Haddad e Manuela. O Brasil merece de novo um governo de ideias modernas contra as oligarquias caducas e cafonas que de tempos e tempos ressurgem de suas tumbas para nos assustar, com suas caras plastificadas e discursos ruralistas ultrapassados em defesa de coisas tão velhas e nocivas quanto agrotóxicos proibidos há décadas na Europa. Essa gente representa tudo o que muitos de nós, brasileiros, e potências europeias, desprezamos. Sorte que o povo finalmente entendeu quem realmente trabalha por e para ele. As pesquisas provam isso. E se há empresários especulando, aterrorizando, ameaçando com altas do dólar, e se há conglomerados midiáticos esperneando, apelando, em desespero, é porque a essa altura também já entenderam.
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