"Uma frente aqui, que não mais enfrentaria a direita, mas agora também a extrema direita, seria tão ampla como acabou sendo a uruguaia? As esquerdas brasileiras, traídas pela coalizão que levou ao golpe de agosto de 2016, podem fazer novas tentativas de convergência com um centro que aqui sempre pende para a direita?", questiona Moisés Mendes
Os uruguaios comemoram hoje os 50 anos da criação da Frente Ampla, queconsagrou Pepe Mujica e Tabaré Vázquez. Mas a Frente, ao contrário do que muita gente pensa, não nasce como um projeto apenas da militância e dos partidos de esquerda. Nem Tabaré e tampouco Mujica são suas primeiras estrelas. O jornalista Gabriel Delacoste destaca uma figura, na capa da versão online de hoje do semanário Brecha, de Montevideú. É o senador Zelmar Michelini, com origens no Partido Colorado, assassinado em maio de 1976 por ordem dos ditadores uruguaios em conluio com a ditadura argentina. Zelmar era vigiado e perseguido pelos militares porque mantinha conversas com os tupamaros. Refugiou-se na Argentina e foi assassinado aos 52 anos, dentro de um carro em Buenos Aires. Ao lado dele estavam os corpos do deputado blanco Gutiérrez Ruiz (ex-presidente da Câmara dos Deputados) e dos tupamaros Rosário Barredo e William Whitelaw. Todos tinham marcas de tiros, uma tentativa dos assassinos de simular uma execução na rua. A verdade é que os quatro haviam sido mortos por torturadores e depois metralhados. Nunca descobriram os criminosos. O jornalista Zelmar era o que poderia ser considerado um social-democrata. Não era esquerdista, nem socialista, mas um democrata que se afasta de um partido de uma centro-esquerda moderada e muitas vezes envergonhada, para tentar aglutinar forças contra a ditadura. Também não era militante de esquerda o general Líber Seregni, considerado o patrono da Frente Ampla, que a ditadura manteve encarcerado de 1973 a 1984. Seregni foi por duas vezes candidato da Frente à presidência do Uruguai. Quando a Frente Ampla finalmente elegeu seu primeiro presidente, Tabaré Vázquez, em 2004, Seregni havia morrido três meses antes, já desgastado com setores à esquerda da Frente. A FA surge com ambições fortes, formalizadas em compromissos do estatuto, como a reforma agrária e a nacionalização dos bancos. Com o tempo, acolheu setores de centro da política uruguaia, Tabaré adotou atitudes liberais no governo e Pepe Mujica, exausto de tantos conflitos, passou a pregar a moderação. Em outubro do ano passado, Mujica renunciou ao mandato de senador, e Tabaré morreu em dezembro. A Frente Ampla busca uma reinvenção, depois de ser derrotada pela direita do blanco Luis Alberto Laccalle Pou no ano passado. Mas foram 15 anos no poder. O meio século da Frente uruguaia pode nos inspirar sobre as saídas para o Brasil, com todas as diferenças entre os dois países, principalmente de tamanho e relevância internacional, diante do dilema de um provável frentismo sempre sem rosto e sem forma que nos desafia. Uma frente aqui, que não mais enfrentaria a direita, mas agora também a extrema direita, seria tão ampla como acabou sendo a uruguaia? As esquerdas brasileiras, traídas pela coalizão que levou ao golpe de agosto de 2016, podem fazer novas tentativas de convergência com um centro que aqui sempre pende para a direita? Eis as questões que Fernando Haddad, já lançado pré-candidato do PT, deve considerar, não só em conversas de pequenos comitês, mas com reflexões em voz alta.
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
Artigo publicado em
https://www.brasil247.com/blog/os-50-anos-da-frente-ampla-haddad-e-os-dilemas-do-frentismo
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